28 Julho 2022
“Todas as ideias de Brutalismo são organizadas em torno de um conceito: dependemos, como humanos, de todo o planeta, e as consequências do que é destruído em um extremo distante de nós acabam nos alcançando. Mas é uma dependência confrontada com 'corpos sobrantes, humanidade enjaulada', com uma 'comunidade dos cativos'. Grupos humanos que não contam, migrantes fora das fronteiras e os pobres excluídos em seu interior. A Terra, apesar do que dizem as declarações universais, não pertence mais a todos nós”, escreve o jornalista Martín Sacristán, em artigo publicado por Revista Mercurio, 25-07-2022. A tradução é do Cepat.
Um sentimento comum à nossa sociedade ocidental é que não tem mais nada a fazer a não ser contemplar o fim do mundo. Como se a breve história da humanidade já estivesse consumada, e nada pudesse ser remediado. Essa percepção coletiva aparece de forma especial na ficção, cada vez mais ocupada por uma série de narrativas apocalípticas, distopias e todos os tipos de colapsos. Coletivamente, paramos de acreditar no futuro. Brutalismo, último ensaio do filósofo Achille Mbembe, surgido em nossa língua [em espanhol] este ano, publicado por Paidós, parte desta tese. (A edição brasileira é publicada por N-1 Edições, 2021. Nota do IHU)
O momento não poderia ser mais ideal: esse conceito de um fim inevitável está se tornando cada vez mais comum e mais presente em nossas sociedades. Mas Mbembe, com o uso das teorias sociológicas mais empregadas frente ao fenômeno, nos oferece uma abordagem diferente.
Em seu livro estão presentes as ideias do Plantationoceno, que frente à corrente do Antropoceno dá maior ênfase à nossa forma de considerar o planeta como um lugar de extração de recursos. São as ideias de Anna Tsing e suas propostas de sobrevivência colaborativa. Também está presente o novo materialismo e os debates teóricos de suas pioneiras N. Katherine Hayles e Donna Haraway.
Embora o verdadeiramente fundamental de Brutalismo seja sua dimensão política. Propõe-nos imaginar uma comunidade radicalmente inclusiva para o planeta, ressaltando a urgência dessa tarefa para o quanto antes. Refundar a comunidade humana para que seja capaz de conviver com os outros seres vivos.
Não é uma obra utópica porque não contém promessas, nem métodos, apenas reflexões. Mas surgidas a partir do ponto de vista dos povos que, como ele diz, precisaram criar seus recursos do ar. Sua perspectiva é africana, construída a partir da mais profunda compreensão do Ocidente.
Pela sua origem e desenvolvimento intelectual, Mbembe possui uma posição privilegiada para sustentar esta visão. Sua origem camaronesa, seu doutorado na Sorbonne em Paris e seu trabalho habitual como professor na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo. Não por acaso, dedica o livro aos seus três países.
O brutalismo arquitetônico é sua inspiração e ponto de partida para criar um nexo comum ao ensaio. Para ele, esse movimento representa a oposição entre o ato de demolir e o de construir, confrontados. Hoje, assistimos à demolição dos seres, coisas e sonhos, ao mesmo tempo em que uma sociedade cada vez mais ligada à tecnologia não para de construir a nova realidade, nem o poder vacila em aproveitá-la para desmantelar todas as formas de resistência.
Para o filósofo, há uma série de constâncias nesse processo: o desastre ecológico, a crise migratória, a inovação tecnológica e o pensamento colonialista no Ocidente, que ainda persiste. E todas essas constâncias acabam reduzindo a vida e, portanto, a pessoa, a mera matéria bruta.
Enquanto a biosfera colapsa, seus recursos naturais se esgotam vertiginosamente e sofremos o reverso tóxico desse processo. Envenenando-nos com a água que bebemos, com os alimentos que comemos e até com o ar que respiramos. Frente à biosfera, a tecnosfera avançada nos desloca como humanos do centro do processo, transformando-nos em meras engrenagens de uma máquina.
Esta é a origem da angústia que predomina em todos. Pode parecer novo e inquietante para nós, alerta Mbembe, mas é justamente o devir histórico da África, desde que se lembra. Primeiro o colonialismo e depois o caudilhismo local, exploraram e envenenaram seus recursos, submeteram seus corpos, minimizaram seus direitos como seres humanos.
Não é tanto que tenhamos que aprender do africano, o autor jamais faz esta afirmação, mas, sim, que ao nos colocarmos diante do espelho da compreensão, entendamos que outros coletivos humanos já passaram muitas vezes por esta situação. Ser capazes de compreender, sem colocar uma distância entre nós e os outros, poderia nos levar a essa nova consciência planetária. Na verdade, disso depende não só a nossa sobrevivência ecológica, mas também a das nossas sociedades ocidentais, tal como as entendemos hoje.
Mbembe diz que devemos começar entendendo que existe uma imposição no que hoje chamamos de capitalismo, que consiste em acreditar que não há um fora do qual não possamos nos apropriar, nem um modo de viver diferente do nosso que devamos respeitar. Temos que proporcionar desenvolvimento aos povos primitivos e obter seus recursos, independentemente de onde estejam.
Isso faz parte do nosso brutalismo, atual e histórico, ao qual agora se somam pessoas que não querem mais julgar, nem pensar por si mesmas. E o mal-estar que surge em consequência dessa sociedade problemática já afeta a todos nós. O mesmo dessa tendência agora dominante de entrar em um grupo, seja ele qual for, antes de ficar excluído. Melhor fazer parte do poder do que se opor aos seus ditames.
Mais uma vez, essa ideia está levando as nações a reivindicar identidades excludentes, para o avanço do que o filósofo chama de microfascismos. Um processo que não vai nos tirar do problema, pois na verdade insiste em reforçar as condutas que nos trouxeram até aqui. O caminho, explica o autor, é reconstruir e reparar ao modo africano. Não buscando recuperar algumas propriedades perdidas, a exclusividade racial sobre um país, as terras poluídas livres de qualquer toxina, para nos apropriarmos delas novamente, mas buscando recompor as relações e assim estabelecer um novo modo de nos desenvolver no mundo.
Os atos de reparação são apenas um exemplo. Mbembe cita muitos outros, baseados no africanismo, proporcionando-nos um ponto de vista que não estamos habituados. Como entender que as fronteiras não são mais administrativas, mas que separam os humanos admissíveis daqueles que não são. A fronteirização é uma tática de poder onde a água, os recursos e os corpos não são mais móveis. Fixam-se e, portanto, pertencem. Mas a quem exatamente? Queremos ter certeza de que seja a nós. E para isso cedemos parte de nossas liberdades, ou estamos dispostos a isso, em troca de segurança: a de que ninguém cruze nossas fronteiras.
Sabemos que tudo isso acontece. Este ensaio funciona apenas como um espelho, mas sem citar casos concretos. Esta é uma característica muito singular de Mbembe que sobretudo os leitores mais propensos a pensar por si mesmos apreciarão. A atualidade fornece todos os tipos de exemplos nos quais poderia apoiar seus argumentos, mas por não os utilizar, qualquer leitor pode colocar suas preocupações cotidianas nos parágrafos. Independente do país ou região em que viva, se é vegano, negro, de direita ou de esquerda. É um acerto, e algo com o qual não estamos muito habituados, hoje, no gênero ensaístico. Além disso, reforça a ideia que deseja transmitir: que o problema brutalista é planetário, universal e comum a todos os humanos.
Outra parte importante de suas reflexões é ocupada por essa vida digital da qual não podemos mais escapar, e que nos trouxe um retorno à velha emotividade com conotações religiosas. A tecnologia da conexão nos convence de que um mundo sem opacidade pode existir, contradizendo a si mesma. As novas ferramentas tecnológicas também nos aproximam de uma aspiração sempre humana e sempre africana. Ser mais do que humanos por meio de objetos que sejam um suplemento de nossa humanidade.
Mas isso só pode ser alcançado em sociedades plásticas, cujas fronteiras estão em contínuo movimento, como sempre aconteceu na África. E mais, insiste, o animismo africano e sua metafísica são agora mais úteis como metafísica do que a clássica religiosidade ocidental, pois está mais em sintonia com este presente, onde a fronteira entre o objeto e o humano se esvanece cada vez mais.
Todas as ideias de Brutalismo são organizadas em torno de um conceito: dependemos, como humanos, de todo o planeta, e as consequências do que é destruído em um extremo distante de nós acabam nos alcançando. Mas é uma dependência confrontada com “corpos sobrantes, humanidade enjaulada”, com uma “comunidade dos cativos”. Grupos humanos que não contam, migrantes fora das fronteiras e os pobres excluídos em seu interior. A Terra, apesar do que dizem as declarações universais, não pertence mais a todos nós.
Contudo, a ideia mais importante do livro, o principal motivo para lê-lo, é que Achille Mbembe não nos aponta se existe ou não uma cura para tudo isso. Mas se não exercitarmos a cura, só nos restarão os funerais. E para esses não haverá limites, nem fronteiras, nem exclusões.
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Brutalismo: humanos diante da mudança ou extinção - Instituto Humanitas Unisinos - IHU